segunda-feira, 7 de janeiro de 2019



AJURI LITERÁRIO by Marta Cortezão
Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio, são extensões de sua vista; o telefone é extensão da voz; depois temos o arado e a espada, extensões de seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação (Jorge Luís Borges).
Múltiplos olhares sobre a Literatura constitui-se de dezesseis artigos e uma crônica, cuja coordenação pertence aos pesquisadores José Benedito dos Santos, Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira, Kenedi Santos Azevedo, Elaine Andreatta, Francisca de Lourdes Souza Louro. É um desses livros que, desse privilegiado mirante, possibilita ao leitor ou à leitora não apenas apreciar harmonioso Ajuri Literário, mas também sentir-se partícipe dele. É uma obra realizada a muitas e experientes mãos, em fértil solo acadêmico, onde o clima, propiciado por nobres gentilezas e sinceras amizades, sazonou significativa messe. Este afortunado ajuntamento literário é um convite a conhecer, provar, degustar e saborear precioso sumo (made in Amazonas) da ampla, dinâmica, caleidoscópica e diversa literatura produzida em solos brasileiro, português e moçambicano.
Da colheita realizada por este valoroso Ajuri Literário, em solo brasileiro, há onze artigos. No primeiro deles, mais que olhar, é possível ver e sentir – através da literatura – a opressão social, estimulada por fatores socioculturais, políticos e ideológicos, das vozes silenciadas, marginalizadas em O grito dos excluídos em Relato de um Certo Oriente, de Milton Hatoum, que descortina dura e crua reflexão sobre as diversas e complexas formas de exclusão na sociedade amazonense, onde a presença destas vozes silenciadas, no espaço enunciativo do romance, denuncia este próprio silenciamento sociocultural e produz um movimento de resistência à dominação ideológica, cujo instrumento de luta é a língua/literatura.
Seguindo fresco cheiro de flores, este livro de múltipla face nos brinda com o segundo artigo sobre singular poeta-flor, pintada de antítese: Violeta Branca e a revelação do sagrado, em que se aprecia magistral análise poética de alguns poemas do livro Ritmos de inquieta alegria, publicado no ano de 1935.
No terceiro, A desintegração da identidade cultural em “A Caligrafia de Deus”, de Márcio Souza, e em “Muhraida”, de Henrique João Wilkens, salta, diante os olhos do(a) espectador(a), importante abordagem acerca da perda da identidade cultural ribeirinha e indígena do Amazonas, marcada, principalmente, pela violência sofrida contra as personagens das respectivas obras, fruto da aculturação, da marginalização e do extermínio praticados pelos jesuítas, no século XVIII.
E ainda com as mãos enterradas, sulcando preciosas amazonidades em solo brasileiro, se aprecia doce Relação rio-mulher: estudos de intersemiótica do conto “Rosalva”, de Vera do Val, e das fotografias “Rio Juruá” e “Rio Içana”, de Pedro Martinelli, uma análise da representação da identidade amazônica, onde desfilam rio e mulher em curiosa harmonia poética à luz da Semiótica.
No quinto artigo Cidade e memória: Manaus de antigamente, não importa se as mãos estão sujas de terra, pois o olhar está muito ocupado, absorto (re)descobrindo a Manaus dos sujeitos excluídos, a cidade sem história e carente de memória, através da sagaz, apaixonante, crítica e peculiar arte da percepção do geógrafo e cronista Aldemir de Oliveira. E eis que, a partir da política e da cultura, é a História que emerge da cidade e leva o leitor ou a leitora a refletir sobre o Bairro Praça 14 de Janeiro: cultura e resistência negra e também sobre as contribuições culturais legadas por seus próprios moradores.
E o sétimo artigo traz à baila contemplativo olhar sobre A poesia de Cecília Meireles: ensaio e poética inaugural, de Sophie Andresen, que chama atenção para a importância da linguagem poética de Cecília e sua peculiar invenção na arte da palavra como reveladora de sua atitude diante do mundo. O poema Motivo do livro Viagem é o exemplo utilizado por Andresen para demonstrar a dualidade (objetividade e subjetividade) existente na poesia de Cecília, deixando, no paladar de quem o lê, autêntico sabor do mundo ceciliano. A teoria do número três no conto A Cartomante, de Machado de Assis, é o seguinte paneiro e vem carregado de genialidade machadiana; debruçando atento olhar sobre a perspectiva simbólica da numerologia que, possivelmente, tenha utilizado Machado. E a colheita não cessa, entregadas mãos que trazem A Representação do feminino n’Os Sertões, de Euclides da Cunha, uma análise desde o contexto sociocultural da mulher desta época. A recriação do mito Iemanjá e Orungã: uma leitura do romance “Mar morto”, de Jorge Amado, é o penúltimo artigo colhido por incansáveis e determinadas mãos em solo brasileiro.
O extasiado olhar, no limiar da ficção e da história, se desdobra agora para refletir sobre a construção da identidade afrodescendente de uma considerável parcela da sociedade brasileira. E para encerrar diverso leque literário, com que este livro nos brinda, se pode desfrutar da última colheita do bloco da Literatura Brasileira, A literatura infantil contemporânea: a leitura da palavra e da imagem, que revela um olhar crítico e reflexivo a respeito das práticas de leitura e formação de leitores efetivos sob atenta análise de aspectos multissemióticos de obras da literatura infantil.
É desde essa multiplicidade de olhares que, a passos decididos por íngremes caminhos, prossegue o Ajuri Literário, “num ziguezague de pesados fardos / sobre cabeças varonis e arteiras (...) E assim marcha um exército decidido, / sua força colossal não se dissipa, não falha” porque o importante é a colheita que, por hora, tem ávidas mãos debruçadas sobre solo português. São dois os artigos. O primeiro deles é A poética de Sophia Andresen: um olhar de justiça e realidade no poema “Catarina Eufémia”, onde, através da poesia, o leitor ou a leitora, com indignação, testemunha impactante denúncia das injustiças cometidas pela ditadura salazarista. E para encerrar a colheita por terras camonianas se vislumbra A escritura da história em “Um homem: Klaus Klump”, de Gonçalo M. Tavares, que tem como propósito interpretar a obra deste autor sob as concepções de trauma e testemunho e como tais concepções se refletem e se representam dentro desta narrativa.
Agora se abre passo à colheita em solo moçambicano. Eis que o prefácio Ajuri Literário, ritualmente, saúda este fértil solo entoando, em coro, fragmentos do poema intitulado Identidade , uma espécie de prólogo que sugere o tema predominante do próximo bloco literário a ser colhido por tão zelosas mãos:
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
(...)
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Este bloco está constituído de três artigos que versam sobre as obras de dois autores renomados da Literatura de Moçambique: o primeiro deles Dizer, não dizer e desdizer: imagens femininas em Couto e Chichorro propõe uma analogia entre ficção, o dito e o não dito, tendo como enfoque o dialogismo entre a literatura e as artes, a fim de discutir os conceitos de identidade e memória. Em A construção do herói cultural em “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, de Mia Couto, o tema da identidade cultural é tratado através da recriação cultural das tradições dos povos bantos, assim como da trajetória do herói cultural, Marianinho. Sendo que o terceiro, também sobre a obra de Mia Couto, Cicatrizes da violência colonial “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” convida o leitor ou a leitora a uma reflexão acerca dos impactos da violência colonial, onde ficção e história caminham lado a lado, apoiadas nas propostas teóricas da Literatura de Testemunho.
E, é com a crônica "Fragmentos de uma vida em construção" que o Ajuri Literário, na companhia de seus leitores e leitoras, entoa seu canto de despedida, dando vivas ao labor executado a tantas e diligentes mãos que prepararam profícua messe, sob causticante sol do Amazonas. É o momento de parar para um descanso e dialogar sobre memórias – “essa perspectiva” pretérita que, desprovida de pureza, é intenso “presente existencial” – degustando autêntico sumo amazônico da literatura. Enfim, Múltiplos olhares sobre a Literatura é um livro que surpreende a cada página; é o lugar onde o simples ato de olhar é mais que contemplar; é ver e é sentir o mundo através da literatura; é empapar-se em rica diversidade literária. A desfrutar!




"O leitor é a ferida do livro que ele lê: por sua leitura - a tua, a minha, a nossa - dessangra-se toda a possibilidade totalizante, ideal, da biblioteca em que lê, do livro que lê, ou até a possibilidade de um só leitor que são todos. O leitor é a cicatriz de Babel. O leitor é a fenda, a rachadura na torre do absoluto". In: FUENTES, Carlos. Geografia do romance. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 56.





"Macho (e misógino). O macho adora a feminilidade e deseja dominar o que adora. Exaltando a feminilidade arquetípica da mulher dominada (sua maternidade, sua fecundidade, sua fragilidade, seu caráter caseiro, seu sentimentalismo, etc), ele exalta sua própria virilidade. Em compensação, o misógino tem horror de feminilidade, foge das mulheres excessivamente mulheres. O ideal do macho: a família. O ideal do misógino: ser solteiro com muitas amantes; ou: casado com uma mulher amada sem filhos" (KUNDERA, 2016, p. 139). KUNDERA, Milan. A arte do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018




Marta Cortezao
O livro ficou lindo, por fora e, por dentro, mais ainda! Fragmentos do prefácio, escrito por mim. Parabéns aos organizadores José Benedito Dos Santos KenediAzevedo Francisca De LourdesLouro Elaine Andreatta e Rita Barbosa de Oliveira. Foi uma honra falar do trabalho de vocês. Sucesso!
A coletânea “Múltiplos olhares sobre a Literatura constitui-se de dezessete artigos e uma crônica, cuja coordenação pertence aos pesquisadores José Benedito dos Santos, Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira, Kenedi Santos Azevedo, Elaine Pereira Andreatta e Francisca de Lourdes Souza Louro. É um desses livros que, desse privilegiado mirante, possibilita ao leitor ou à leitora não apenas apreciar harmonioso Ajuri Literário, mas também sentir-se partícipe dele. É uma obra realizada a muitas e experientes mãos, em fértil solo acadêmico, onde o clima, propiciado por nobres gentilezas e sinceras amizades, sazonou significativa messe. Este afortunado ajuntamento literário é um convite a conhecer, provar, degustar e saborear precioso sumo (made in Amazonas) da ampla, dinâmica, caleidoscópica e diversa literatura produzida em solos brasileiro, lusitano, angolano e moçambicano”. 

terça-feira, 3 de julho de 2018



“Ser acusado de não ter ligação a este planeta e a seus povos pode ser surpreendente para uma considerável camada daqueles que nasceram em um país, foram criados em outro, educados em um terceiro, casaram-se, tiveram filhos e enterraram seus entes queridos em um quarto, um quinto e um sexto país. E ainda aos que viveram e trabalharam em sete e ou oito outros países e agora podem ser obrigado a pedir naturalização em um nono lugar devido ao Brexit. Pode também ser novidade para todos nós que fomos forçados a fugir, desesperados, de nossos países de origem em consequência de guerra, fome, doenças, terrorismo, perseguição e desastres de ordem tanto natural quanto financeira”. Bahiyyih Nakhjavani. O alforje. Tradução Rubens Figueiredo. Porto Alegre: Dublinense, 2017, p. 10.

terça-feira, 26 de junho de 2018


“Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã. As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem”. BOSI, Alfredo.  Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 11.   

sexta-feira, 22 de junho de 2018



FUGA DA MORTE - Paul Celan

Leite negro da aurora bebemos-te à tarde
bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à noite
e bebemos bebemos
cavamos um túmulo no ar onde não se há de estar apertado
Mora um homem na casa que lida com cobras que escreve
quando descem as sombras escreve à Alemanha teu áureo cabelo Margarete
ele escreve e se afasta da casa e cintilam estrelas assovia chamando os mastins
e assovia judeus seus judeus cavem fundo uma cova na terra
agora nos manda tocar para a dança
Leite negro da aurora bebemos-te à noite
bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à tarde
e bebemos bebemos
Mora um homem na casa ele brinca com cobras e escreve
quando baixam as sombras escreve à Alemanha teu áureo cabelo Margarete
Teu cabelo de cinza Sulamita cavamos um túmulo no ar onde não se há se estar apertado
Grita cavem mais fundo essa terra vocês acolá vocês cantem e toquem
pega o ferro do cinto balança-o seus olhos azuis
cavem fundo essas pás vocês estes aqueles não parem a música a dança
Leite negro da aurora bebemos-te à noite
bebemos-te cedo e no dia bebemos-te à tarde
e bebemos bebemos
mora um homem na casa teu áureo cabelo Margarete
teu cabelo de cinza Sulamita ele brinca com cobras
Grita toquem a morte mais doce é a morte um dos mestres senhor da Alemanha
grita toquem mais sombra os violinos depois subam como fumaça
e hão de ter uma cova nas nuvens que lá não se fica apertado
Leite negro da aurora bebemos-te à noite
bebemos-te à tarde é a morte um dos mestres senhor da Alemanha
bebemos-te à noite ou bem cedo e bebemos bebemos
a morte é um mestre senhor da Alemanha seu olho é azul
ele acerta-te a bala de chumbo te acerta na mosca
mora um homem na casa teu áureo cabelo Margarete
ele atiça os mastins contra nós e nos dá uma cova nos ares
ele lida com cobras e sonha é a morte um dos mestres senhor da Alemanha
teu áureo cabelo Margarete
teu cabelo de cinza Sulamita

(Tradução de Renato Suttana)
Nota do tradutor: Na tradução deste poema, tentei reproduzir o ritmo anapéstico do original. Onde isso não foi possível, optei pela fidelidade ao sentido. Os versos "dein goldenes Haar Margarete / dein aschenes Haar Sulamith" ("teus cabelos dourados Margarete / teus cabelos de cinza Sulamita"), tão importantes no contexto, são evidentemente intransponíveis para o português sem o sacrifício desse ritmo.